domingo, 28 de outubro de 2007

A primeira cena 2

Soul Sócrates

O olhar transbordou a primeira cena. Não era verdade. Não era real. Nem mentira. Tão pouco, fantasia. O que se via era a abertura. Sem cortinas. A apresentação do que viria a ser. E ali estava. Virava para um lado. Mexia as mãos. Era o que se via. Era o que viria. Era o que iria. Restava o que estava dentro do quadrado. A primeira expectativa mágica evaporou. Os cortes se foram com as cortinas e as cercas. Não seriam cortes. Não seriam cortinas. Não seriam cercas. Era o quadrado. Bastava. Os gestos demoraram a dizer. Não era mudo. Nem cinema novo. Tão pouco documentário. Sem prosa. Restava o olhar que pouco a pouco ia se abrindo. Rompendo cercas, cortinas e cortes. Uma insistente permanência do olhar. Que transbordava. E aos poucos os cacos se juntavam. O quadrado revelava a troca dos olhares entre a câmera, o olhar por de trás dela, mas que também estava à frente, no lado, e que aos poucos se viam juntos. Todos abertos e a contemplar o momento. Portanto, não era a imagem. Não era o diálogo. Era o momento compartilhado. O ato de compartilhar. A terra. A luta. A tela.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

A primeira cena

Soul Sócrates

As lágrimas caiam. Olhava pra mim. A cabeça baixa. Parecia distante. Mas olhava pra mim. Aguardei um movimento. Esperava. Tentei suportar. Consegui. Ele também insistiu. E olhava. Uma eternidade. Sem diálogo. Permaneceu sentado e olhava. E aos poucos percebia. Ele mostrava sua alma. E o que era angústia virou sintonia. Ele ali sentado. Não estava parado. Parecia. Mas não estava. Ele olhava. Trazia as pessoas para dentro de si. Um convite para um vasto mundo. E o quadrado revelava palavras e pedras. Eram caminhos. O quadrado ultrapassava o limite da imagem. Era a intimidade. Os traços dele viraram signos. Uma revolução interior. Ele atraia o quadrado e o que era abismo. O olhar transbordou. A primeira cena.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Coração de leão.

Ismael Teixeira.

Patas acariciavam a presa. Lambia seu rosto no escuro selvagem. Pequenos grunidos jaziam ímpios. Sussurros. No fim um absurdo para desligar a cidade. Andava tesa. Seu corpo se movia. Andar sábio. Monótono dos felinos. Não tinha pressa. Seu olhar tudo via. Olhar de tigresa. Esperta. Olhar de onça fria. Com um só pulo entrou no carro. Não olhou para trás. Antes o lambeu carinhosamente. Olhou para seus olhos que pediam secos um segundo a mais. Sorriu. Por fim mordeu seu pescoço. Disse adeus. Sumiu. Ele era só. Ele. Ficou eternamente ali com o gosto do beijo. Com olhos fechados a viu sumir. Boca salgada. Sabores alísios de convés. Acostumada a cruzar atlânticos em navios cargueiros. Matar a solidão do mar com livros e conversas de marujos filipinos. Seus sonhos estavam já além dos sonhos. Dos destinos. Olhos. Olhos tranqüilos. De desafiar a monotonia do oceano. Mundos. Selvas. Caminhos. Tudo cabia dentro dela. Fora. Peitos. E Pernas. Sexo. Um ilustre retrato de gato. Pose de fera. Ele. Filhote. Pequeno feroz. Escondido na toca. Protegido pelas garras. Mamava em baixo dela. Dormia entre os braços fortes. Focinho manchado. Ela. Olhos. Olhos de águas. Gotas grossas. Azuis. Longos e distantes. Olhos de mãe de felinos. Contemplava-os o menino enrugado. Cansado de nadar em seus labirintos. Doce. Ficou salgado. Ali. Como uma ilha contemplando um navio que passa. Atravessou a rua olhando pro nada. Andou. Parado. Assustado e faminto como uma presa que não escapou do abraço. Perfume de pêlos. Juba. Desejos. Língua. Carne. Sangue. Hálito. Gosto quente na boca. Banquete vermelho. Salgado.

*Dedicado a Leoni Josephine - in memorian.

O amor não seria

Soul Sócrates

Se os opostos se fossem e fossem embora
Teríamos menos, teríamos poucos amores
Lares seriam pares de botas e meias vazias
Bares teriam ares de bêbados e seus copos vazios
Sem acasalamentos, casas ou casamentos
Não seríamos postos por lado de fora
Sequer dormiríamos no sofá
Só seríamos
E o amor não seria

Janela fluida

Raiça Bomfim
Quando o azul celestino
vinha à beira da aragem
e o verde alaranjava
na paisagem,

os lençóis faziam ninho
pra seu corpo desvelado.

Cortinas desabotoavam-se
penetradas pelos raios
derradeiros.

Espelhada no ocaso,
ela entregava-se ao sono,

enquanto pássaros e insetos,
ajanelando-se no bálsamo,
celebravam, em cantoria,
a plenitude dos orvalhos.

domingo, 14 de outubro de 2007

Corroendo a esperança

Soul Sócrates
Arrastei a carroça até a cancela. Não havia boi nem mula. O boi desfaleceu entre a pedra e o caminho. A mula empacou e pediu alforria. Restou meu couro negro, livre, mas surrado. Amarrei as cordas nos braços e puxei. Ao chegar olhei a enxada, o trabalho e o sol. Difícil. Sem água, animais, mulher e filhos - seria custoso remoer aquele barro inteiro. Não desanimei. Escorri o suor das ventas e coloquei o chapéu no lugar. Desembestei em golpes contra o chão. Batia. Batia. Batia com vontade. A terra não iria vencer. Uma nuvem resolveu aparecer. O ar da graça resultou em golpes mais fortes e ligeiros. Acelerei. Aproveitei cada segundo de preguiça da nuvem e reticência do sol. O chão foi cedendo e o cansaço resistindo. Um respingo assim de água brotava. Água. Louvado seja. O sorriso foi se abrindo, os dentes sobrando e o olhar penetrando a terra e a água. Finalmente, juntas.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

O poeta e a moça

Ismael Teixeira

As ruas guardam as melhores cenas. A arte mendiga o cotidiano. O sonho esgueira-se no real. A tarde fria esquenta quando uma moça bem vestida passa. Discreta e bonita vai deixando a rua nua. Segura livros e revistas. Guarda a beleza nos óculos escuros. Ao dobrar a esquina um jovem boêmio pinta com seu violão pessoas apressadas. Algumas ficavam vermelhas, outras amarelas, muitas somente caladas. A beleza da mulher caminhou até o poeta. Sem diminuir o passo deixou cair alguns versos num chapéu amaçado. Para quem passava de longe os versos pareciam luzes de uma pena. Mas os que passavam de longe não souberam onde estava a incerteza. O poeta viria a beleza surgindo. Saberia quando e como nasce um encanto. Mas misteriosamente não deixou de interromper sua canção. Nem mesmo olhou para o chapéu. Os passos se confundiram com outros passos e a beleza se confundiu ao por-do-sol do litoral. Não notei mais o poeta. O som grave da noite. Seu silêncio em mi maior daquela tarde fria abrira o vagão do dia. Tudo retornava ao seu lugar. Para onde foi a moça? E o poeta? No dia seguinte tentei recuperar a cena. Não havia poeta, mulher nem beleza. Aquela poesia havia ido e ao meu lado apenas novas poesias. Voltei para casa com o coração partido, como se as peças não concordassem comigo. Em casa distraído imaginei como tudo teria desenrolado. No sonhar do acontecido. Ao chegar em casa a moça entre os livros teria versos alísios para tomar com brioches e chá. O poeta dois reais e vinte centavos para escrever poesias novas esquentando o café que esfriava o mate. Chá.

Soní-fero

Ismael Teixeira

coração vermelho
em pé na madrugada
vasculha sonâmbulo
pêlos becos a calma
andarilha nos fios
sobrevoa calçadas
saboreiam livros sabores
de areia
coração em pé
estômago sem veias
põe-sias saídas
nas janelas alheias
coração insone
sonho de fera
entre grades cidades
faminto de guerra
uiva declama rasga
entre as patas
a lona imunda da noite impossível
im sonho po sonífero ssível fera