quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

O tempo das idéias

Soul Sócrates
O que há não se sabe até quando surgiu sem pedir licença e desapareceu no final da esquina remota das coisas que um dia vão deixar de existir plenamente. Distraído, um homem vazio olhou o descompasso daquelas coisas que não foram vistas e imaginou em que pé estaria o mundo se elas ainda estivessem entre nós, dentro de nossas cabeças. Tentou captar os resquícios desta tentativa frustrada, mas bela, de mudar o mundo com um devaneio. Um suspiro de imaginação travestida de razão, que por intermédio de conceitos e noções sobre a realidade, inventou um universo inteiro de coisas que não existem. Se foram, mas talvez voltem e o carteiro avise. Quem sabe virá numa carta levada por um caixeiro viajante. Hoje, todos acreditam que virá via e-mail. Que venha através de um pen drive, mas venha. Apareça.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Escritos sobre a greve - 9º PARTE

Soul Sócrates

Antes, contudo, porém, entretanto, do velho barbudo dizer a apoteótica frase “Agora são 1979, ou não”, o menino, finalmente, usou as mãos nervosas, agora bastante firmes, lançando-as contra a goela do ancião de barba por fazer. O ato - juntamente com o uso mágico das palavras - trouxe de volta para a garganta daquele vaso ruim, a página revirada daquela história que também estava por fazer e que não seria quebrada sem antes lermos o que estava escrito naquele pedaço de papel, no momento, bastante desgastado pelos tortuosos caminhos de uma garganta exausta de discursos e parábolas sobre a vida cotidiana e pigarros sobre os bastidores e corredores dos planaltos e planícies da política partidária. Os danos eram irremediáveis, pois, não poderíamos evitar em escrita os desarranjos que uma página de livro sofreria frente uma verborrágica enxurrada de adjetivos e substantivos presos naquele sarcófago de pronunciamentos oficiais. É certo que não veremos muitas exclamações no texto, tão pouco questionamentos, afinal de contas, os discursos eram enfadonhos e cheios de peripécias positivas e progressistas, portanto, sem sobressaltos, apenas rodeios que não chegam a lugar nenhum, ou seja, um nobre cidadão para lá, digníssimo para cá, vossa excelência do outro lado e volta e meia frases de efeito moral, como “ninguém jamais ousou tanto e vislumbrou com tamanha propriedade os rumos desta nau chamada, amarelo cor de manga”. Enfim. O braço firme do menino encasquetou no pescoço do velho barbudo e arrancou a mensagem do meio de sua garganta. Os olhos do ancião mal acreditavam no gesto pouco factível que acabou sendo vítima. Olhava - estupefato - as suas cordas vocais, que enlameavam o braço riste do menino. Eram como minhocas, ou simplesmente, como linhas e labirintos que se entrelaçam feito frases e parágrafos, umas sob as outras.

Escritos sobre a greve - 1º PARTE
Escritos sobre a greve - 2º PARTE
Escritos sobre a greve - 3º PARTE

Minha cabeceira

Raiça Bonfim

aos meus, farei um pedido:
fazer um refavor ao tempo-

descombinar todas as partes,
repintar lugares, remontar cenas.

verter as caixas de retrato empilhadas
no meu quarto
e picotar tudo em desenhos variados:

fazer deles uma matéria de improviso.

quem sabe uma saia de sacadas,
um terno de alamedas,
um chapéu de montanhas,
um espartilho de cabelos.

com os mares,
pode-se compôr um travesseiro.

os sorrisos e caretas
talvez sirvam para semear roseiras.

e se os olhos da menina
se esbarrarem com os da moça,
e a rebento, pequenina,
esboçar um primeiro riso,

fazer de tudo, tudo,
uma matéria de improviso...

fantasia de memórias
pra pular o carnaval.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Escritos sobre a greve - 8º PARTE

Um velho barbudo cortou a avenida principal com um livro nas mãos, logo depois do menino de braços nervosos dobrar a esquina e terminar a canção ensinada pelo avô. Antes do velho descer as escadas do metrô, o menino pôde ler o que estava escrito na capa: 1979 passos para organizar uma greve. Ele não hesitou e foi atrás do livro. Quando era pequeno, o menino ouviu uma lenda que falava de um livro com 1980 páginas. Nunca entendeu por que se falavam do número de páginas e sempre achou um exagero escreverem tanto para no final ler o que todo mundo já sabia desde a primeira linha. Encontrou o velho barbudo sentado na beira dos trilhos com o dedo indicador orientando a leitura. O velho barbudo escutou os passos do menino de braços nervosos logo atrás(as pernas dele também estavam tensas), parou a leitura, ergueu a cabeça, virou meia face (o que seria meia face?) e disse que a greve não existe e não pode existir.Segundo o velho barbudo, a greve é injustificável e, ainda se fosse possível realizar uma, não saberíamos por onde começar, pois, a greve foi apagada da história, restando apenas 1979 páginas. Mas não seriam 1980 páginas? Questionou o menino. O velho barbudo franziu o rosto com a pergunta e amassou uma das páginas que estava em sua mão, levando-a até a boca. Mastigou e engoliu. Agora são 1979, ou não?

Escritos sobre a greve - 1º PARTE
Escritos sobre a greve - 2º PARTE
Escritos sobre a greve - 3º PARTE
Escritos sobre a greve - 4º PARTE
Escritos sobre a greve - 5º PARTE
Escritos sobre a greve - 6º PARTE
Escritos sobre a greve - 7º PARTE

Escritos sobre a greve - 7º PARTE

Soul Sócrates

Um clique da escrivã. Um mundo desconfigurado emergia pouco a pouco das margens nubladas da tela do computador, readquirido pelo partido maior, após uma desastrosa direção partidária exercida pela longíqua corrente majoritária da legenda. Na medida que os códigos binários combinavam entre si qual seria o próximo passo matemático que iria estabelecer os laços entre a pergunta feita pela escrivã através do clique do mouse e a imagem que iria preencher a tela do monitor, o menino contorcia o braço
à procura de uma mensagem que lhe retirasse das costas a responsabilidade de pronunciar em voz alta a palavra inaudita. Mas, estava escrito: Greve, greve, greve, greve, greve. Assim terminou o nonagésimo simpósio do partido maior cor de esperança, que após um grito solitário do único militante presente ao evento, decidiu via e-mail realizar a maior greve da história das greves que haviam sido
esquecidas pela classe. O resultado foi tão inesperado e as mensagens circularam com tanta velocidade pela grande rede, que coube aos dirigentes maiores acatarem a decisão, mesmo que a maioria deles sequer soubesse mais como se faz uma greve. Enquanto todos procuravam nos livros e nos arquivos históricos do partido maior quais seriam os próximos passos, o menino de braço enrijecido seguia pelas ruas da cidade vermelha contarolando uma velha canção de ninar sussurrada por seu avô quando ele ainda era apenas um bebê. "Grave, grave, escute as grades, todas as classes marcham em torno da grade. Grave, grave, arrebente as grades, por trás de um menino
marcham as classes". E assim cantou até o final da rua das flores que não morrem.

Escritos sobre a greve - 1º PARTE
Escritos sobre a greve 0 2º PARTE
Escritos sobre a greve - 3º PARTE
Escritos sobre a greve - 4º PARTE
Escritos sobre a greve - 5º PARTE
Escritos sobre a greve - 6º PARTE