quinta-feira, 17 de julho de 2008

Olhos de cão azul

Gabriel García Márquez

Então olhou para mim. Pensava que olhava para mim pela primeira vez. Mas então, quando se virou por trás do abajur, e eu continuava sentindo sobre o ombro, nas minhas costas, seu escorregadio e oleoso olhar, compreendi que era eu quem a olhava pela primeira vez. Acendi um cigarro. Traguei a fumaça áspera e forte, antes de fazer girar a cadeira, equilibrando-a sobre uma das pernas posteriores. Depois disso a vi ali, como havia estado todas as noites, de pé junto ao abajur, me olhando. Durante breves minutos não fizemos nada mais que isto: olhar-nos. Eu, olhando-a da cadeira, equilibrando-me numa das pernas traseiras. Ela, em pé, me olhando, com uma das mãos, comprida e quieta, sobre o abajur. Via as pálpebras iluminadas como todas as noites. Foi então que lembrei o de sempre, quando lhe disse: "Olhos de cão azul". Ela me disse, sem tirar a mão do abajur: "Isso. Já não o esqueceremos nunca". Saiu da órbita suspirando: "Olhos de cão azul. Escrevi isso por todas as partes”.

Leia na íntegra:
Gabreil Garcia Márquez

O conto da ilha desconhecida

José Saramago

Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era a das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém a chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar.

Leia o conto na íntegra:
José Saramago

quarta-feira, 16 de julho de 2008

O signo da água

Sócrates Santana

Finalmente, o governo terminou as instalações dos reservatórios. Esses vão receber dos canais construídos entre o grande rio vindo do Norte e o grande rio comprido que corta o país do Norte a Sul, toda a água necessária para matar de morte matada e fulminante – sem espaço para maiores justificativas da história política daquele estado-nação – a sede ainda não saciada pela longa engenhoca inventada, deus sabe lá por quem, para acabar definitivamente com a vontade de beber de um povo que por desuso ficou habituado a apenas a creditar que esse dia chegaria, mas sem jamais convir de que tal momento realmente seria realmente real, verdadeiro, distante de uma miragem maldita que acendia na cabeça uma idéia falsa de fim e começo de uma nova vida, banhada pela pura água, palavra que ainda era sabida, que por lenda ainda sobrevivia na língua cativa daquela gente, ainda que pouco pronunciada, ainda que a forma e a função para que servia jamais tenham sido unidas numa coisa que fosse ao mesmo tempo as duas, sem nem mesmo dividir, sem que o significado desta possua uma referência visível para dizer, isto é, como se fosse aquilo apontado com o dedo para algo que de tão distante da realidade fez confundir o miolo do mais dedicado filosofo kantiano, o qual diante de tal quadro de escassez, viu que a palavra havia ganho a condição de representada em deriva da condição imposta de representação. Foram décadas, séculos, milênios de promessas mirabolantes, sofistas, politiqueiras e eleitorais. A palavra havia ganho valor sobre algo que não era visto, mas muito comentado, estudado, citado, escrito, pesado, pensado, prosado, imaginado, idealizado, profetizado, desenhado, mas nunca visto, levando em conta de que o nunca também ganhou com o passar dos tempos um outro sentido nesta terra de promessas, já que o coitado não via passar na sua frente a muito a tal água, portanto, assim como um banco de dados que precisa deletar dos seus arquivos informações antigas para assim cederem espaços para novas, o nunca apagou da memória a última vez que viu correr por suas mãos, metaforicamente dizendo, a tal água. A população vivia, não se sabe Deus como, de ouvir falar. Porém, após investimentos nunca visto em nenhuma outra administração pública, a água deixaria de viver no imaginário para estar ao lado de todos aqueles que por ela por tantos anos oraram, que Deus a tenha, alguns até diziam.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

À espera do governador

Sócrates Santana
Aguardavam todos. Sem reclamar, diga-se de passagem. Ora com as mãos nos bolsos, ora com os celulares encostados no ouvido. A condição incomoda pouco importava. Disfarçavam bem. Não eram nem de longe as lideranças regionais que discursam em grandes palanques pelo o interior. Tão pouco lembravam aqueles homens endinheirados, que fechavam os bares e embebedavam todos por sua conta. Ali todos aguardavam. Em pé, diga-se de passagem. Aos montes, prefeitos, candidatos a prefeito, vereadores, candidatos a vereadores, aguardavam o governador. E não quero aqui dizer que o excelentíssimo não estava, como quem bate na porta e pergunta se tem gente. Não, de modo algum. Só que assim como todos aguardavam a sua hora, a sua vez de falar com o doutor ou com a moça do balcão, assim também aguardavam todos. Em fila. Cada um com o seu crachá, conforme reza a cartilha da Casa Militar. Tudo por uma foto com o governador. Afinal de contas, são eleições municipais.

domingo, 13 de julho de 2008

Sorrisos

Sorrisos são caminhos suspensos
Varais onde secam olhos fechados
Ao mar. Unindo pouco e infinito
Um dia descobri um abrigo
Quando meus pés descalços abraçaram a terra
Como um cavalo abraça um homem numa cavalgada
O corpo, então, fica próximo da alma
Enquanto a pele esticada toca vazios
Penso que chamam isso de infância
Mas prefiro dizer desafios
Sorrisos são discretas danças
Um convite para deixar o círculo
E mais...
Muito mais...
São as melhores maneiras de ficarmos mais próximos dos passarinhos.

sábado, 12 de julho de 2008

Sem título

Ontem vi a vida sentar no meu colo
Não era bela nem amarga como sugerem os tolos
Disse somente com uma voz de criança
Para deixar aquela velha insônia
Já não há mais tantos homens no mundo
Qualquer bicho pode falar
Era uma longa noite aquela
E naquele quarto de hotel
Ascendia um charuto com o calor das minhas botas
Um breve sorriso
Palavras num papel amassado à pouco antecipara sua visita
Diziam para não se preocupar
Gente como eu cumprimenta os homens de passagem
E dá de beber aos animais.

Goiás Velho
Em alguma noite de Junho
.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Sem título

Uma homenagem a Manoel de Barros e Maiakovski

esqueçam
não são os sonhos que fazem filhos
que reviram a terra quente
e acatam o destino
enquanto mãos pelejam
sonhadores dormem
eu quero escrever somente quando as palavras secarem
e pesadas como tijolos
possam se erguer uma a uma com a força dos meus pulmões
quero versos como estacas e vigas
poemas como casas e hospitais
escolas para qualquer um dos meus camaradas
hoje a poesia é uma pedra e uma estrada
com flores, sim, mas uma pedra e uma estrada
onde até mesmo uma vírgula diminuta caiba
sem se achar minúscula
esqueçam
o sonho é somente o descanso de mãos cansadas
que após se equilibrarem no último trem
acariciam mães e filhos risonhos
papéis no último rastro de luz
hoje a poesia é pedra e estrada
sem rima, sem hipérbole, nem metáfora
poesia com flores,sim, mas calejada
como aquela plantada no quintal de uma pequenina casa
antiga casa que viveram os verdadeiros poetas
que escreviam somente o que sabiam:
tudo é vontade virando pão
e pão virando vontade.