Soul Sócrates
Não era bela, tão pouco feia. Uma pessoa comum. Entrou na livraria aparentando naturalidade. Havia sobre ela uma sensação de prazer que parecia nascer do próprio medo. Tinha a um tempo, a consciência do perigo que ia correr e a certeza de uma suposta superioridade: pensava que sabia de tudo e os que estavam em volta não sabiam de nada. Imaginava comandar a situação. O prazer era como aquele que, o leitor no seu tempo de menino, fazia-o optar pelo papel do bandido e não do detetive.
Ela examinou com cuidado a situação. O vendedor mais próximo atendia um freguês. Ao fundo, outro vendedor descia a escada encostada à estante, carregando uma pilha de livros. Por capricho, a mulher pleiteava nas prateleiras um exemplar de "Um Ensaio Sobre a Cegueira", do escritor português, José Saramago. Desistiu. Pensei: muito largo, vai dar na vista dos vendedores. Acabou decidindo-se pela prata da casa: uma edição nova dos poemas de Castro Alves. Era estreito, pouco suspeito. Lentos, seus dedos tocaram o volume e o retiraram com cuidado da prateleira. Um vendedor, ao lado dela, procurava um livro na estante. Pôs-se a folhear o livro, atenta aos menores movimentos do homem ao lado. Ele se afastou sem olha-la.
Foi ai que aconteceu uma destas coisas que só vemos em filmes e novelas: o vendedor na escada deixou cair com estrépito alguns volumes que carregava. Todos os olhares convergiram-se para ele, menos o meu. Bastou um segundo – segundo que ela se aproveitou para enfiar o livro entre as folhas do jornal que trazia debaixo do braço – para ela. Sem pestanejar, apanhou outro livro para despistar: “Crime e Castigo”, que ironia. Dostoievski jamais poderia ter sido tão contundente. Colocou o exemplar no lugar. E olhou sem pensar, na certa, certificando-se que ninguém a havia visto.
Ali eu estava, sentado, com os olhos fixos em um exemplar pouco comemorado, mas, bastante sugestivo para a ocasião: “Ainda lembro”, do jornalista baiano, Jean Wyllys, vencedor de um programa que tem o dia a dia de pessoas confinadas numa casa como conteúdo de um show, dito, da realidade. Esboçou espanto. Ficou parada, a poucos passos me olhando. Fiz que não vi. Deve ter pensado: talvez, o rapaz esteja esperando que eu fizesse menção de sair, para me pegar com a boca na botija. Parecia sentir que eu sabia de tudo e ela, agora, não sabia de nada. Invertiam-se os papéis.
Apanhada na armadilha que ela mesma havia montado, ela olhava ao redor, incapaz de qualquer reação. Eu continuava folheando o livro do Jean. Aos poucos ela foi se acalmando. “Não, ele não viu nada”, pensou. “Ninguém me descobrira, que bobagem era aquela, sem mais nem menos?” , como se dissesse para si mesma, ande, vamos, siga em frente. Decidiu acabar logo com tudo aquilo: agora ou nunca! Apertou o jornal com o braço e avançou firme até a porta. Foi quando me levantei. Ela hesitou e eu saí pela porta, carregando um exemplar nas mãos.
segunda-feira, 13 de agosto de 2007
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Um comentário:
O obaservador onisciente, vai tomando corpo no texto até chegar o personagem principal da história. Essa evolução é um requinte desse conto. "Classicamente" a forma de contar: limpa, objetiva, sóbria, literária, permite uma leitura gostosa e despretenciosa. O que vejo com muitos bons olhos, pois requer habilidade e senso de equilíbrio estético. Enxuto, perfeitinho um texto, enfim, uma delícia de lê-lo em qualquer lugar como deve ser uma boa leitura dessas de fim de tarde. Outro aspecto importante é o uso de outros autores contextualizando a própria narrativa. Sofisticado autor, sofisticado...
isma.
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