domingo, 9 de março de 2008

A pequena bela

Ismael Teixeira

No limiar da luz. Entre o fim e o infinito. Um arco-íris em preto e branco anunciava que o passado ficou ainda mais distante. Pequeninas mariposas estouravam no ar como se notas de piano voassem. Milhares delas afagando o ar inundaram a janela de um pequeno quarto afastado de uma cidade afastada. Mariposa em algum lugar significa mudanças e todos aqueles bichinhos haviam avançado humildemente aquele cômodo carregando um chapéu nas mãos como quem pedisse licença. Antes de estourarem olhavam fixamente para o silêncio e se despediam. Cada uma numa nota solitária chamava a morte de todas elas que vinham e vinham soando uma valsa nua e triste. O quarto, inundado de uma luz azul, permitia vislumbrar alguém que dançava. Parecia uma pequena menina que valsava sozinha com aquela noite de corações perdidos. Ele andava numa rua deserta. A lua, as velhas janelas solitárias, pequenas chamas de luzes o seguiam. Fantasmas sorriam em cada esquina perigosa. Os passos de velho destemido estalavam monótonos no piso de pedra branca; pareciam mal tocar no chão. Escorregava lento no piso gelado como quem escrevesse dormindo. Na rua não havia nada além de corujas brancas languidamente vagas resmungando bêbadas qualquer bobagem. Sapatos enlameados, um alforje de couro deixava o ar mais maduro com sua presença conhecidamente masculina e sedutora. Um homem é homem até que se prove o contrário. Mulher não. A garotinha de mãos tão frágeis parecia ter conhecido o amor apesar da idade. Seu quarto guardava as cores, os detalhes ainda de uma menina, porém àquela noite, parecia deixar escapar um olhar diferente. No leve sorriso um borrão quase imperceptível de quem já não era mais primavera. O homem usava um cachecol azul e alguns cachos escorriam de uma boina gasta. Apesar do frio parecia andar sobre as águas. Na visão de cima, talvez do quarto andar, lembrasse um caubói cansado se houvesse mais amarelo na paisagem. Mas como me posicionei de costas não passava de um homem comum atrás de alguma diversão. Quem sabe um boêmio de uma taberna próxima. Havia notado ainda marcas de batom na sua camisa. Exalava perfume barato. No quarto ainda estouravam as mariposas. Estalavam como se mãos deslizassem num aparelho acústico. A jovem rodava, rodava, rodava a valsa triste como se não houvesse culpa de descobrir ser mulher. De olhos fixos no mistério postava as mãos delicadas como se dançasse graciosamente com um elegante cavalheiro. Seu cabelo, porém, desfeito. A camisola de urso, porém, amassada. A cama ainda quente. Após alguns dez metros notei que relâmpagos desenhavam flores e nuvens como cachos de uvas estavam prestes a espremer violeta a derramar vinho nas paredes. Nas mãos do pequeno rapaz hortênsias que como ele pareciam se importar com o tempo e andavam cada vez mais velozes. O coração apressado ecoava nas ruas próximas. Parecia sutilmente apreensivo, ou mesmo temeroso. Ninguem sabe ao certo quando um homem está apaixonado. A jovem flutuou até o banheiro e deixou que a chuva lavasse seus detalhes até que novas formas tomassem volume. Madeixas, pêlos, seios enchiam como água toda aquela tempestade. Suas mãos firmes tocavam seu corpo como se conhecesse onde guardava seus pensamentos, seus desejos. Mentia para si mesmo e sabia porque mentia. O garotinho olhou rapidamente para a sacada de um prédio velho de esquina. O vazio em seu peito não era mais vazio que aquela rua e titubeante avançou para as escadarias deixando pingar gotas violetas nos degraus. A grande lua a observava do quarto. Vagarosamente ela apertava seus botões e espartilhos. O batom vermelho provocava o espelho e combinava com o rubro e preto das suas roupas íntimas. A companhia tocara tímida. Ela sorriu. Ele pequenas voltas em frente à porta. Ela como se tivesse outras coisas para fazer se projetou devagar para receber o sujeito. Ele trêmulo se preparava para encenar qualquer cena de efeito. Quarto. Sala. Porta. Maçaneta. Olho mágico. Sorriso de fêmea. Olá de criança. Um preço.

*Agradecimento especial a Ana Bárbara - obrigado pelos toques.

2 comentários:

Anônimo disse...

Um bom texto literário não é para o leitor simplesmente entender, mas talvez, sim, ser provocado, estimulado a reagir afora os seus atos mais comuns. Continuo a insistir diante da proposta do blog, como sempre fiz desde os primeiros textos. Esse espaço não é um espaço para simplesmente comer palavras, mas sim ser provocado por todas as vias que a literatura possa proporcionar. A dimensão aqui, somente é o texto, e porque não, o bom texto - aquele pelo qual depois de lido vagamente permite ao leitor encontrar o que perder, ou perder o que encontrou. Portanto, aqui deixo a oportunidade de que não sejamos razoáveis mas pretensiosos na escrita. Não vamos simplesmentte imitar o mundo, ou querer que a leitura e o texto sejam essa visão estática e novelesca de palavras estanques e repetitivas. Estamos falando de literatura. Por favor.

Ismael.

Anônimo disse...

É de extrema relevância o dizer acima ou abaixo (depende da ordem que escolher). É claro que procuramos sentidos e significados para as representações apresentadas para a leitura, além de laços entre as cenas. O mínimo que se espera é coerência entre o modo e a forma de escrever. Isso é algo que se percebe no texto referido. A atenção sobre a palavra, pois, o uso, digamos, a cor enquanto analogia suspensa do imaginário (leia-se interpretação) de cada um, é uma característica sinestésica, que envolve as metáforas com outras metáforas, sensações com outras sensações. É um texto repleta de sensações e imagens que não buscam as imagens por si - simplesmente - mas a sensação que essas imagens sugerem. Isso é literatura. E não vejam nesta crítica elogio, pois, por maiores que sejam os achados deste recente obra, não vislumbro neste presente texto todas as qualidades demonstradas em outras abordagens pelo autor. Contudo, venho dizer que concordo empiracamente - pois assim exerço também a busca ideal pela literatura - com o autor quando reafirma o seu compromisso em criar muito mais que histórias, agindo assim de maneira contundente sem tratar as palavras como meras expectadoras de uma história.