segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Notas mínimas

embarque

Katherine Funke

Estava ali na zona de transição entre uma cidade e outra, prestes a embarcar em um avião; ali não era lugar para apegos ou lembranças. Depois do beijo, disse-lhe adeus, deu as costas, sorriu para ver mais uma vez a cara dele, e pensou - não sem pontada de alegria e medo no peito - que uma nova vida iria começar dali em diante.

toda manhã

Katherine Funke

Chove no rosto dela. E no corpo e na bolsa. Carla saiu de casa sem proteção. E de sandália. Agora anda pelas calçadas molhadas, sem marquises para abrigá-la. "Eu não tô nem aí pra morte/não tô nem aí pra sorte/eu quero mais é decolar toda manhã...", ela cantarola, pra si mesma. Arnaldo Baptista era seu herói. Então vai para o trabalho debaixo de chuva, e brinca com os pés com as poças do caminho, e tenta descobrir a temperatura da água testando-a com a língua sobre a pele do antebraço. São 7h30 da manhã, suas sandálias estão cada vez mais encharcadas. Chove no rosto de Carla, e ela sorri.

o importuno

Katherine Funke

Veio correndo inacreditavelmente na direção da fila. Atropelou duas mulheres (uma delas bem jovem e bonita à qual ainda dirigiu um leve gesto de cabeça, em desculpas) e um rapaz. Equilibrava num braço um notebook aberto. Nas orelhas, um fone de ouvido conectado ao celular. E senta-se ali, à beira do embarque na aeronave do vôo 1605, ainda resolvendo seus problemas com a pressa de um jovem empresário.

O que ninguém sabia é que ele só estava no telefone com a mulher, que queria saber, nos últimos instantes, qual tipo de queijo o marido queria no macarrão para jantar. Para isso havia enviado um e-mail com cinco tipos exóticos a serem avaliados em dois minutos. E ele avaliara. Decidira pelo coalho, que nunca comera, porque chegou a Brasil há duas semanas. Definir o cardápio era, de fato, uma questão de urgência máxima, se tivesse a ver com ser atencioso com sua adorada e perfeita Paloma.

2 comentários:

Anônimo disse...

As cenas sugeridas pela jornalista Katherine são inspiradoras. Aos roteristas de plantão são ótimas "muletas". Qualquer uma dessas cenas podem complementar uma história. E na verdade isso é muito interessante.
Também gosto da impressão da autora olhar uma imagem e imaginar sentidos para elas. Gosto desta noção de fragmentos, mas também soa como uma maneira da autora fugir de reflexões mais apuradas da realidade e da própria ficção.

Anônimo disse...

descrever a realidade como quem descreve o nada. o texto não comenta, não opina, não critica, não impõe, sugere, explica. O texto é um relato. E ao contrário de uma crônica o fato comum não tem qualquer menção à curiosidade, portanto o texto não se apóia a nenhum recurso tentador. Sem objetivo o leitor não o identifica com nada e como se lêsse uma quase anônima notícia de jornal não sente qualquer emoção a não ser o tédio. E é aí, na minha opinião, que ficou meu interesse.

ismael.