Samir Machado de Machado
Acordou com o sol batendo em seu rosto. Desorientado, não tinha a mais vaga idéia de onde estava ou como fora parar ali. Sentia a areia do deserto em suas mãos, grudada nos cabelos e impregnando suas roupas. Quando se levantou, não soube dizer se estava enfraquecido pela sede ou se ficara mais pesado do que de costume, mas foi com muito esforço que conseguiu fixar-se sobre as duas pernas e observar, à sua frente, as dunas repetirem-se monótonas até o horizonte.
Erguer o braço até a altura do rosto foi outro enorme esforço para ele. Mas só assim percebeu que, onde antes havia minúsculas estrias de pele humana, agora havia pequenas ondulações. Tocou a própria face e sentiu-a áspera como pedra, o próprio toque provocava uma fricção. Quando o vento ficou mais forte, os grãos começaram a se desprenderem da ponta dos dedos, desenhando filetes de areia no ar. Nesse momento, sua visão se expandiu, estando onde cada grão de areia de seu corpo estivesse. Em segundos, o vento desfez sua mão e ele não sentiu nada.
Apenas sede.
Embora não houvesse dor, mantinha a sensibilidade de cada parte de seu corpo, mas agora esta noção de si próprio se alargava. Cada grão levado pelo vento era sua extensão, ele via o que cada grão via, e sentia-se cada vez maior. Infelizmente, manter os pensamentos em foco era uma dificuldade crescente. Viu no horizonte alguém se aproximando. Tentou gritar por ajuda, mas a voz não saiu.
O vento ficou mais forte, e já sem os braços para manter o equilíbrio, foi derrubado para trás. Seu corpo caiu e se desmanchou. Pouco a pouco, o que restava de suas feições e sua forma foram sendo desfeitos e se misturando ao deserto. Sua visão tornou-se tão ampla que via cada canto do deserto, sua percepção cresceu até tornar-se o próprio deserto.
Mas ainda tinha sede.
Contudo, o local onde seu corpo caíra ainda concentrava a maior parte de sua consciência e de seus grãos, que nunca se misturavam totalmente à areia do deserto, pois possuíam uma densidade maior, eram mais macios. Ali, ele esperava, sedento. Podia sentir quando um viajante se aproximava, sentia pisarem sobre seus grãos. O viajante viu atiradas ao chão as roupas que um dia cobriram o corpo de alguém, e correu até elas. Sem ter consciência de outra presença, caminhou para próximo do centro, e ali afundou. O Homem de Areia o abraçou e o puxou para baixo, e quanto mais a presa se movia, mais afundava, sendo aos poucos soterrada, a areia entrando por seus olhos, ouvidos e boca, o envolvendo e o devorando, arrancando dos ossos a carne e da carne o sangue, pois o corpo humano é água, e ali alguém tinha sede. Que, por um tempo, foi saciada. Mas logo voltaria.
Então era preciso esperar.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008
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3 comentários:
Um conto é um texto capaz de num espaço-tempo muito mais curto que um livro alonguemos nossa percepção a impossíveis distancias. Aqui pude carregar toneladas de pó em minhas mãos e setir o gosto de terra na boca. a capacidade sinestésica e fruitiva do texto é um ponto fortíssimo que deve ser mencionado. Não nos esqueçamos que também somos homens areias muitas vezes: Secos, frios, sedentos, sensíveis...enfim. Muito feliz sua metáfora, a condução, e os pequenos detalhes que exigem dos leitores, aqui sutilmente, lentes de aumento.
E não deixa de ser uma analogia ao dito popular: quando você oferece a mão, agarram o braço.
Um ótimo conto. Com uma visão lúdica, assim como as esculturas de areia, que estranham a sua nova forma. Adimirável como o homem que faz com que olhemos cada grão de amor. Senti um misticismo no texto devido a junção de elementos: homem = universo , areia = terra , sol = fogo , vento = ar , vida = àgua. E assim sedentos ficamos sempre.
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