sábado, 2 de fevereiro de 2008

Todos os crimes são por amor

Ismael Teixeira


Sinatra amanhecia no bairro. O som ainda não tinha dormido. Aquele choro de lobo embalava outros lobos com mensagens coloridas que estouravam no ar. Ele na janela fumava um Carltron vermelho do bar mais próximo. Bebia um suspeito Nescau embebendo o filtro de açúcar. Sem saber deixaria uma possível pista para qualquer detetive de madame mal amada. Os bons detetives não são aqueles que sabem resolver um caso conjugal. A foto é sempre uma mentira e como o amor são além das fotos. A janela turvava a melhor luz do dia. Aqueles que amanhecem com o dia vivem mais e melhor. Que ironia. Seu corpo estava estático. Apenas o braço movimentava-se monótono em cada baforada. Sua mente parecia pairar nas últimas estrelas que contemplavam também o nascer do sol, mas não estavam. Aquele olhar parado. A boca semi-aberta. Os dentes quase próximos me cheira ou parecem lembranças máximas. Lembranças de plástico. Aquelas que o cérebro mastiga como um bom chiclete de infância. Anotei em minhas notas. A casa parecia desarrumada, mas também parecia ter sido uma arrumação como se alguém quisesse se esconder nela. O cinzeiro ao seu lado nada tinha de suspeito além de uma boa noite com alguém. Chocolates, flores amarelas e comidas orientais.O vinho não tinha acabado mas interrompido por um lapso de amor. As taças ainda guardavam as bocas e o apetite. O cabelo preso, a cara miúda entre os pêlos. As mãos pequenas que escreviam delicadamente. O sol já fazia sombra e a escuridão do caso persistia. Entretanto, quem conhece a noite sabe que quando as coisas pioram é que aparece alguma visita. No chão ao lado do criado mudo havia uma carta. Parecia ter sido escrita a pouco, apesar de ser uma carta velha. Não a quis tocar. Agachei com cuidado e li sem me mover. A carta parecia uma confissão. E fora escrita em cima de outra autêntica. O primeiro trecho fora escrito com letras rápidas, atrapalhadas e compulsivas. Muitos verbos não deixavam parecer nada além de culpa. A confissão não tinha lógica. O crime fora passional. Toda culpa é uma idéia tenebrosa que aconteceu e a autora, mulher de trinta anos escrevia somente devido a mulheres de trinta anos esquecessem o que é o amor. O outro trecho era uma saudade. Citava Vinícius e Van Gogh para mostrar toda a inocência e loucura que é tremer o amor. Uma carta doce, apesar de velha. Parecia ter escrito em papel de carta. Essas coisas que não vendem mais. Corações pequenos saiam dos olhinhos de pequenos ursos apaixonados que se abraçavam numa só bola de pêlos. Confesso que diante da ternura quase derramei algumas lágrimas. Malditas lágrimas que mancham a imagem de homem durão como eu. Lágrimas descuidadas podem pôr fim ao caso e acabar com a carreira de qualquer chefão. Holmes uma vez me relatou um caso parecido com ele. Cocei a barba e ele continuava lá. Agora somente mais parado. Tranqüilo, ao som daquela mais elegante gravada com um Jobim e outro ainda mais elegante ascendi um cigarro e olhei pela última vez àquele rapaz. Nada além me ocorreu. Apenas um olhar diferente. Esses casos não são tão difíceis, mas indubitavelmente me obriga a crer ou não na verdade. Mais do que um homicídio mais bárbaro a solidão da cadeia é muito mais clara e legítima. As restrições, a violência e o inferno do cárcere são óbvias demais para um crime que não há culpados. A morte não tem sangue. A palidez, o frio não tem paz. Ele agora estava deitado, parecia dormir ainda mais pálido e apenas eu sabia o porquê.

3 comentários:

Anônimo disse...

genial!!!!!!

ismael.

Anônimo disse...

Genial mesmo!!!!! Seus labirintos levam a saídas que só você conhece...

Anônimo disse...

Delicado. Cheio de sombras. Um belo texto policial, cheio de romance e uma narrativa recheada de intuições e sentimentos que só, só o narrador sabe: "apenas eu sabia o porquê". Melhor ainda é o desenvolvimento de cenas particulares e que cobram do autor uma capacidade unívoca de traçar e custurar a narrativa...ah...que texto gostoso...que bom ler em primeira mão o nascimento de um romance...ah...que doce...