sábado, 16 de fevereiro de 2008

Senhoras na Janela


Ismael Teixeira


O sorriso é um crime invertido. E eu. Como qualquer arma de bandido. Alegre. Atiro. Descansou a pena no pote de tinta preta antes de pensar que não era exatamente aquilo que queria enquanto letra. O sorriso é uma arma apontada para cima e ele queria acertar algo mais em baixo. Pisou devagar no chão de madeira . Tinha medo que o barulho pudesse tirar do lugar certas frases. Macio desceu as escadas e bebeu um copo de água imaginando ser um bom vinho. Milagre de um pobre escritor como ele. Após se refrescar, pois apesar do frio aquela noite, sentira seus nervos acelerados. Ascendeu, por fim mais uma vela e se dirigiu novamente à escrivaninha. O melhor sonho é quando sonhamos que somos felizes. Mas engraçado que quando esse sonho torna-se real, achamos que estamos loucos. Esse é um pequeno trecho de um escritor conhecido por guardar flores secas nos bolsos. Onde passava deixava um perfume estranho que provoca um torpor fazendo os passantes sentirem sono. Era visto sempre uma vez, não mais que isso. Escrevia nas janelas dos trens reclinado e pensativo distante dos olhares curiosos e impressionados. Isso fora há muito tempo, quando as pequenas ruas ainda tinham nomes. Ninguém se incomodava com ele, era inofensivo, entretanto, mesmo naquela época se sabia que não havia conversão para os lunáticos. O crime de ser livre sempre será pago com sarcasmo e indiferença. Mas havia os que o admiravam. Apesar de ser visto quase sempre solitário, quando não trocava rápidos diálogos incompreensíveis com anões e artistas de circo, alguns anotavam seus escritos que ficavam nas janelas dos trens como possível forma de faturar alguma coisa no futuro. A vela aquece as mãos enquanto lança uma boa réstia de luz trêmula no ambiente. A tinta preta parecia escrever saudades distantes. E de fato escrevia. O escritor conhecera o escritor dos vagões. Aquele homem tão exótico que ninguém poderia se aproximar se não houvesse em si também alguma aberração. Ao seu lado havia uma flor num pequeno jarro. Era uma flor comum que manchava de violeta as estradas de ferro em determinadas épocas do ano. A cor violeta é usada por mulheres que perderam os maridos. É a cor da lembrança sempre viva de mulheres antigas. A história daquele homem pouco se sabia. Até mesmo o escritor que escrevia sobre a nostalgia de não mais vê-lo. Parecia sim ser muito rico. Não por aparentar riqueza. Pelo contrário. Muita gente granfina ria de seus furões nas calças gastas e no sapato velho. Era, sim, rico, pela postura aristocrática e polida de andar, e dos seus gestos sempre contidos e movimentos delgados. Lembrava um artista mímico e triste, apesar do ar infantil que provocava uma aparência doce sob os trapos. Não fugindo a regra o escritor o viu apenas uma vez. Mas era essa única vez que provocara tanta constrição naquela noite de vozes baixas. Havia desespero naquela tarde chuvosa. Um desespero mudo e paralítico. Ele observara as flores violetas na janela daquele trem semi-escuro. Seus olhos secos haviam se cansado de chorar. Ele chorara agora através da chuva segurando em suas mãos ainda uma carta que não fora aberta. Na carta um pedido, uma promessa. No peito a esperança atada como uma forca em seu coração. Chegara tarde demais. Paralisado não vira um verso escrito na janela. O amor nada mais é que entregar sua vida para uma vida sem vida alguma. O problema de amar é que pensamos que há apenas uma vida. As palavras escritas ainda recentemente fizeram o rapaz levantar e procurar o seu autor. Ele já conhecera a fama do insano das janelas, mas diante do abismo que lhe ocorrera aquela tarde seu apetite era transbordar ainda mais o seu mundo. Procurou no vagão e nenhum sinal. Não poderia ser nenhum daqueles homens e mulheres que simplesmente comentavam sobre as coisas somente depois de serem coisas. Após a parada já descrente e confuso viu alguém assobiando para um passarinho. Nunca pensou que poderia mais sorrir. Então sorriu. Ao se aproximar da cena ouviu ainda de costas o rapaz que dizia: O sorriso é um crime invertido. E eu. Como qualquer arma de bandido. Alegre. Atiro. Depois escreva o resto. Ambos ficaram mudos. Ele continuou assobiando de costas. E o outro ali parado. Notando que o silencio o incomodara falou que tinha perdido o amor de sua vida e que aquela frase da janela o fizera muito bem. Vinha somente para agradecer. Após uma pausa e notando que nada mais iria ocorrer por ali pensou em continuar seu destino. Mas antes de continuar seu destino, falou o maltrapilho, lhe contarei que eu escrevo não para os homens e sim para as violetas. As violetas que nos observam da janela. Somente as violetas acreditam no amor. Assim como as senhoras que já perderam seus maridos. Ao esboçar qualquer reação o maltrapilho avançara sutilmente sobre ele e disse baixinho: Volte para a sua casa e continue a amá-la como sempre amou e verá que a diferença é que o amor ainda não se sentiu ainda. Subtraído pela força das palavras no papel releu o texto ainda úmido de sangue negro. Levantou, e olhando para janela contemplou seu jardim ainda adormecido de pequenas senhoras quase azuis.

9 comentários:

N. disse...

quantos cortes.

então eu lembrei de um trecho da música outros sonhos quando diz: "eu sei que o sonho era bom por que ela sorria até quando chovia".

Anônimo disse...

Senhoras na janela: ñ se cansam de te olhar e eu miúda em folhas largas, flores azuis e sementes amareladas, espero seu sol girar pra mim. Me indentifiquei com as senhoras azuis, afinal me acham parecida com elas. Amo teus escritos , assim como Amo-te. Crime invertido: o sorriso, primeiro encontra o que foi roubado e depois o local do crime. Me encontro na diferença. Conto sublime como a mente do escritor e o coração de um primeiro amor. Beijos.

Anônimo disse...

Ah esqueci de perguntar: Senhoras na janela é continuação de Água morna? O escritor citado ambos é o mesmo? Poderia virar livro!

Anônimo disse...

Vou reler...não consigo encontrar as conexões...

Anônimo disse...

Vou tecer um primeiro comentário sobre os primeiros períodos deste texto - cheio de labirintos e imagens inusitadas. Mas, gostaria de reforçar o quanto este autor enfatiza um traço caracteristicos de poucos escritos, mas escritores deste tempo, desta geração. E o fato de escrever "Tinha medo que o barulho pudesse tirar do lugar certas frases", inclui nas linhas da narrativa as influências externas que o autor sofre no momento mesmo qu escreve. Ou quando também fala do infinito mar de possibilidades da literatura, que não precisa imitar as banalidades das coisas concretas. Basta citar passagens como "Macio desceu as escadas e bebeu um copo de água imaginando ser um bom vinho". Na verdade é um culto a invenção, ao mundo possível da literatura. Aqui tudo é. Tudo é um milagre, como destaca. Não só identifica essas caracteristicas, como também compartilho e faço parte desta geração - com esses mesmos traços. Viva a Central Alternativa e Organizada da Sociedade...Viva aos novos jovens...

Anônimo disse...

Não posso luzir apenas as cores, mas o traço deste texto, que é redundante na idéia, mas necessariamente repetitivo.
Contudo, gostaria que o autor deixasse mais claro o uso da cor violeta no texto e a relação desta cor com as mulheres, pois, realmente, interpreto como equivocado o uso desta relação lilás, mulheres, maridos e o termo perderam: "A cor violeta é usada por mulheres que perderam os maridos". Não vejo mulheres antigas, mas novas mulheres livres, que não perderam os maridos, mas ganharam eles. Enfim.

Anônimo disse...

Não existe luto no lilás. Mas im um fusão entre o vermelho e o azul. A força, paixão e vitalidade da juventude com a maturidade, a pacimômia e sabedoria do anil fazem, sem dúvida, do ser uma tradução de notável beleza. Perder, aqui, é sinônimo de compreender e as violetas nas janelas são essa metáfora. A copreenção do amor e da vida. Elas observam, no texto, os homens e também os compreendem. Enquanto para um escritor, escrever para elas é uma concordância, para o outro ainda tornou-se um simples aprendizado. Enfim. Não posso enquadrar mais o texto, pois até mesmo para o autor, ele também é um mistério.

ismael.

Anônimo disse...

Sem amarras, entendo. Neste ponto...nossos traços caminham por lados diferentes, mas não opostos, bem verdade.

Anônimo disse...

rsrsrsrs :o)

Massa a conversa de vcs dois:

"A Fruta e o Barquinho"

... ;)