quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Água morna

Ismael Teixeira

O último ponto fora escolhido, mas era como se não findasse. Algo escorria à deriva. Algo que ninguém ouvia; ninguém calava. O início do conto começava bem. Falava sobre os mares do deserto. O sabor salgado da solidão das dunas, dos ventos que ricocheteiam fios de cabelo na face aventurada. Pensei como de fato o inferno seria senão a possibilidade de se tomar qualquer direção quando só se tem um horizonte sem fim. Até mesmo a cidade só é fácil para aqueles que sabem para onde ir. Existe um sol para cada homem, e o texto narrava àqueles passos no deserto. Aquelas centenas e milhares de pegadas não eram somente uma cena chocante aos meus olhos mas a própria interrogação que separava o porquê de uma resposta clara. Cada passo fora descrito como se o pensamento abandonasse o corpo do passante e ficasse ali, prostrado na areia quente. A linha cobria mesmo uma vastidão, e apesar de comovente pouco entendi o sentido da sua direção. Pude ali ler diante do sol escaldante amores, desejos, medos, passagens minuciosas passadas para trás. O conto era de um autor pouco conhecido e mesmo antes de acabar de lê-lo fui pesquisar algo a seu respeito. Pouca coisa havia, no entanto, uma informação perdida me chamara atenção: apesar de ter boa formação e esposado bem uma madame da alta sociedade adquirindo uma bela família um dia simplesmente desapareceu alegando viagem à negócios para nunca mais retornar. Esse conto, porém, foi encontrado anos mais tarde em um continente distante ao lado de mapas e alguns poemas de sua autoria – únicas pistas a seu respeito. O mais curioso foi que a pesquisa mencionava pouco sobre seus poemas. Todos continham a palavra lágrima. O conto, porém, seguira seco, descrevendo a paisagem desértica como o estado da alma humana, que apesar de bússolas e mapas sempre há onde se perder e onde se achar. A prosa talvez seria a vida enquanto a poesia o sonho? Entre um passo e outro o leitor era arrastado para dentro de si mesmo e obrigado a reconhecer os pensamentos do andarilho como os seus. A tarefa, contudo, era árdua, pois apesar de obrigados a catarmos como se fossem nossos também teríamos que andar mais adiante sem cessar. Não se fazem mais textos como os antigos, principalmente esses que caminhamos junto com eles. Cansado, descobri que não só tornara um andarilho como também não sabia para onde iria apesar de um pensamento me levasse sempre a outro pensamento num prosseguimento ininterrupto e sem fim. Pensei nos meus empregos, nos meus amores, em algumas moradas, pensei em quantos fui, em quantos ainda serei. Mas, no fim o conto não concluira qualquer parecer. Não definira uma parte da vida como se ela fosse algo fácil e desvendável, ou mesmo misterioso e profundo. Senti, com isso, um aperto forte, e confesso enfadado: que conclusão tomar? Depois da viagem o autor somente deixara ao leitor uma sutil proposta. O texto, sem título, deveria ser nomeado. Lembrei então de sua vida e voltando para a minha pensei nas lágrimas. A diferença é que apenas pensei.

7 comentários:

Anônimo disse...

Água morna: brota das águas da vida, corre nas águas da poesia e chega em águas universais.
Água morna alivia e traz a dor.

Anônimo disse...

Ele tinha o universo nos olhos. E quando falava, imensos corpos celestes lhe saiam pela boca. Distantes constelações saltavam em volta dos que, extasiados, tentavam acompanhar as trajetórias circulares. Vez por outra, ele inflamava e um cometa extraordinário saia da garganta, como bala, criando no alvo uma cratera de terra escura e fértil. Sua voz era grave e larga, soava sem começo nem fim.
A menina usava óculos e anotava coisas sobre o universo num caderninho de espiral. Observava ciclos, desenhando círculos coloridos com nome dos deuses. Sentava ao pé dos anciões ouvindo histórias imemoriais. Ouvia e traçava mapas, que distribuía aos irmãos viajantes. Recebia cartas, trocava bilhetes, relatos de terras e povos distantes. Guardava diários em caixas de presente, e servia a cada visitante, um café preto com as pistas que lhe eram de direito.
Sobre o encontro não se disse palavra. Sabe-se que vizinho à voz, há um lugar onde o silêncio reina sagrado. Expêriencia, muda. Ressoa compasso aos ouvidos atentos.

Anônimo disse...

babi, escreves bem! em cerne na forma descritiva: gosto da visão de mundo e da simplicidade local. tens um blog também ou seus escritos são para os amigos íntimos? enfim, dê a mais pessoas esse prazer! abraços:obrigada.

Anônimo disse...

Particularmente, também gostaria de ler Babi em outro espaço. A leitura não é igual. Pois a expectativa deste lugar são os comentários. Nada contra a quebra das expectativas. Mas é prevísivel quebrar espectativas neste lugar.

Anônimo disse...

Ai que emoção! apesar de ñ ter nenhum conhecimento técnico sobre os escritos, apenas os sinto. E alguém observou o meu comentário, mas quem ele é? sócrates = soul ou sócrates = ismael? os dois ou nenhum deles? enfim, me ajuda a descobrir? veja, intercalei os comentários. Mas uma emoção! obrigada, abraços...

Anônimo disse...

"Não se fazem mais textos como os antigos, principalmente esses que caminhamos junto com eles", De onde tirastes esse achado?
O título é genial: lágrimas. Tão doces, tão secas, tão quentes, tão frias: água morna. O que dizer? Digo, pois, que o li antes, mas não pude dizê-lo em seguida. As coisas não vieram assim, interruptamente, uma coisa puxando outra. Traço, contudo, contemporâneo. Não é Saramago, mas revela os desafios que uma narrativa cobra do autor. É original pela maneira que o texto é amarrado. A história de um conto. Ou melhor, uma velha frase dito por mim: "mais importante que a leitura é o que pensamos durante a leitura". O texto reflete a reflexão de escrever, mas, principalmente, a reflexão de escrever pensando na leitura. É fantástico. Um traço contemporâneo, que a nossa geração (ao menos nós dois) procuramos tecer, aprimorar. Não tanto pela história, porque todos escrevem histórias, mas pela arquitetura do texto. Vejo de fato um conto, um ensaio, prefiro. Algo com gosto de Borges. Um escrito para escritores. Não é como o anterior. Não sei se ele finda aqui, poderia. Mas, como todo texto e pensamento...ele é infinito desde o início...

Anônimo disse...

Temos, contudo, de prestar mais atenção na história, o enredo. Coisas lindas são escritas desta maneira também. E combinar esses fatores é espetacular. Estamos procurando, isso é importante. Mas, água morna é um belíssimo texto, mesmo.