sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Sobre os manos e os atalhos da vida...

Walter Takemoto

A partir dos 8 anos (isso quer dizer quase 44 anos atrás!) saí da Vila Mariana e fui morar lá no Alto da Vila Maria, quebrada da zona norte de São Paulo, de ruas de barro e casas pobres e cortiços, quase todas ocupadas por nordestinos e negros. Tive lá os meus primeiros amigos de jogar bola na terra batida e pés descalços, de nadar nas lagoas das águas do rio Tietê, de pegar rãs nos brejos, de jogar bilhar e pebolim. Foi lá também que fui vender sorvete nas ruas, fazer carreto nas feiras, carregar tijolos nas obras.

E a grande façanha foi ser lateral direito no Arsenal F.C. com 13 ou 14 anos, no meio de um monte de homens. Todos os domingos saía o time de várzea no ônibus lotado, em direção a uma outra vila qualquer, pobre do mesmo jeito; uns bebiam a cachaça direto no gargalo, outros fumavam o bagulho de todo dia, enquanto o surdo comia solto. Era a diversão de todos e a paixão de outros, como do roupeiro, que não jogava, mas tava lá, distribuindo e recolhendo as camisas gastas, sujas e fedidas de suor. E tinha os que torciam e que, na falta de rojão, comemoravam dando tiros pro alto, pois que o instrumento de trabalho estava sempre lá, na cinta e ao alcance da mão.

Entre esses tinha o Ceará, bicheiro, que virou lenda por trocar tiros sozinho com a quadrilha do Zezinho da Vila Maria ( bem em frente à casa em que eu morava), uns três ou quatro, e levou tiros na perna, no braço e na barriga e saiu andando sem ajuda de ninguém e pôs todos pra correr com um revolver em cada mão. E continuou dono da banca, enquanto que o Zezinho, por ironia do destino, morreria um tempo depois cheio de balas no estacionamento que fizeram na casa em que eu tinha nascido lá na Liberdade!

E jogava e andava nas quebradas comigo o Jafra, negão de seus 1,80 metro, bonito e forte como um touro, com seus 17 anos. O Jafra tinha o sorriso largo e bonito e era meu chegado do peito e de fé. De vez em quando, eu, lá com meus 15 anos, treinava boxe com ele. Certo dia, o Jafra saiu no braço, ninguém sabe muito bem por que, com o Tonhão, dono de boca de fumo, e não deu outra. O Tonhão apanhou feio. E o que destrói a história de qualquer dono de boca é correr a história de que apanhou de um moleque e ficou por isso mesmo. Dias depois, o Jafra morreu na ponta da faca do Tonhão. E o Tonhão, tempos depois, morreu na cadeia de Aids.

Periferia? Não, “periferida”

Como o Jafra, muitos morreram ou foram para a cadeia ou se acabaram na bebida e nas drogas. Baianinho, Vilson, Samuca, Boca de Sapo, Ari e todos os outros que morreram na memória. Lá naquelas ruas de barro vermelho aprendi o que é viver na “periferida”, os códigos que dão significado a um mundo que é regido por outros parâmetros de convívio e sobrevivência. E isso tudo é pra que mesmo?

É pra dizer que a ida do MV Bill lá na Daslu não me sai da cabeça!

MV Bill, parafraseando (acho que é esse o termo) o velho compositor baiano, como “quase todos os pretos e quase todos os pobres”, nasceu lá em uma quebrada do Deus me livre, onde as coisas são o que são, para os que não são nem pretos e nem pobres. Por alguma razão que desconheço, talvez a música quem sabe, o MV Bill, tal qual o Mano Brown, ou o outro Brown que o Mano esculhambou na MTV, o seu Jorge, o Robinho, ou qualquer outro preto e pobre, teve um atalho na estrada do destino de todos os outros tão iguais que morrem como o Jafra, de morte matada, ou como o Tonhão, de morte morrida na cela de uma cadeia, ou dos esquecidos que morrem e não sabem e teimam em continuar fingindo que estão vivos por aí afora.

E o MV Bill se tornou um rapper. E o MV Bill virou líder da comunidade dos quase todos pretos e quase todos pobres. E o MV Bill resolveu filmar e escrever sobre todos os outros que não encontraram o atalho de saída por algum lugar da estrada do destino de todos eles. E o filme é tão frio, tão seco, tão feio e tão nada, como é a vida de todos que lá estão. E onde é que ficam a alegria, a camaradagem, a solidariedade e tudo mais que sobrevive nas vilas e favelas?

Tudo muito bem, tudo muito bom. Bater laje, comer feijoada e tocar pagode no fim de semana é o que há. O mutirão pra autoconstrução barateia levantar o barraco ou o puxadinho. Dividir o quilo disso e daquilo demonstra o quanto a miséria forja laços de solidariedade e provoca o que de melhor pode a generosidade humana. Que os anjos digam amém!

Mas não é da alegria nascida da miséria que nós, brancos e não pobres, falamos durante anos a fio, ou, como já falaram, não é o pão e o circo que pretendíamos fosse o destino da humanidade.

O atalho salvador e consolador

É ótimo oferecer esporte, capoeira, dança afro, percussão, e coisas do tipo pros meninos e pras meninas dos morros e favelas. É lindo vê-los lá, praticando e sonhando um dia subir num palco e se apresentar pros quase todos brancos, todos intelectuais, todos emocionados, por verem os pretos e pobres que arrumaram um atalho que os tirou das drogas e do crime que apavora os brancos e ricos. Que sucesso é ver uns poucos se safarem, pelo menos não precisamos mais sentir a culpa pelos outros muitos que estão lá, no caminho que lhes reservamos!

O que acontece na vida real é que viramos as costas pra periferida, que purga dia após dia. Qual foi o governo que assumiu a responsabilidade política de enfrentar o problema da miséria, do desencanto, da desesperança e da subvida que marca milhões de brasileiros ? Não venham me falar de bolsa disso ou bolsa daquilo, pois prefiro as bolsas rodantes das dasputas, pois elas são profissionais!

ONGs? Ótimo, mas cadê elas pra dizerem alto e bom som que tudo que fazem nada vai resolver ? Cadê elas pra juntarem o povo e lutarem pra que tudo que fazem se torne de fato políticas públicas? Pois, ao fim e ao cabo, trata-se de dizer que o que importa é um governo que de fato transforme em prioridade o fim da exclusão social.

Mas, e o MV Bill? Tava me esquecendo dele! Foi lá o negrão na Daslu, lançar seu livro. Escândalo! Como é que pode o MV Bill, rapper, saído lá da favela, sobrevivente, que se apresenta com um cano na cinta, porta-voz dos fudidos “que não podem foder fudido”, aparecer ao lado da dona Eliane sei lá o que, trambiqueira de luxo?

Na hora em que vi a foto do MV Bill sentado com a dona Daslu pousando seu rico braço sobre seu ombro fiquei puto, indignado e não acreditava no que via. Passados os dias e a visceralidade do momento, pensei cá com meus botões:

– E os artistas que beijam a mão de ACM e outros tais, pode? Condenamos eles ao inferno e jogamos no lixo seus CDs?

– E as ONGs que conseguem milhões de multinacionais, pode? Vamos dizer que elas fazem um trabalho maravilhoso e precisam desses financiadores?

– E os partidos ditos de esquerda que ganham milhões “não contabilizados” pode? Vamos votar e eleger seus dirigentes socialistas?

Coerência de quem, cara pálida?

E mais isso e mais aquilo e tudo mais que envolve o problema. O que quero dizer é que cobrar coerência de um cara como o MV Bill, que vai na Daslu lançar o seu livro porque recebe financiamento da dona pra construir sua sede e tocar seu projeto, é exagerado em um país sem coerência alguma daqueles que poderiam tentar dar coerência às suas ações. Ta lá o MV Bill com sua ONG, com grana da Daslu, com sessenta minutos do Fantástico, com o Faustão e tudo mais. Mas tá lá também seu filme dizendo que nada tá sendo feito e que os cadáveres vão se empilhando, e que de alguma forma fazemos de conta que nossa parte estamos fazendo.

Por algum motivo, um dia eu saí dessa. E um monte de maluco que andava comigo não saiu. Às vezes eu penso neles e me parece que tudo foi um sonho. Mas tá aí o MV Bill dizendo que é realidade e que o Alto da Vila Maria de 44 anos atrás é um paraíso perto das quebradas de hoje, seja a Cidade de Deus ou o Capão Redondo ou o Planeta dos Macacos.

Obs: texto publicado na Caros Amigos, sem número.

Um comentário:

Anônimo disse...

engraçado como o uso da experiencia pessoal no texto do Takemoto resolve. A mesma experiência do qual o autor trata também foi vivida pelo seu personagem analisado: o rapper, escritor e documentarista MV Bill. Essa opção não só legitima seu discurso como envolve e complementa, tornando o texto auto-justificado pelas citações de sua própria vivência. O texto é muito bom e esse é o seu ponto forte mesmo: as informações presentes, fatalmente realidade do cotidiano da "periferida", são mais imponentes do que se um jornalista a capturasse como um dado qualquer. Entretanto, não foi o final que me chamou atenção. Aliás, o desfecho apesar de interessante, é previsível, pois facilmente a experiência de vida do autor e a do rapper fatalmente iriam se encontrar. O que me chamou atenção foi mesmo uma dúvida. Não seria o rapper também uma "vítima" das ONGS, questionadas pelo autor, ainda na juventude? Será que ele também não teria sido salvo por essas missões expedicionárias, quase cristãs? Enfim, quem souber, que me esclareça.

ismael.