Renata Belmonte
Era cidade e era noite. E estava sentada observando a janela, tinha terminado o serviço mais cedo, coisa que, raramente, acontecia, tinha se casado com um homem distinto e de muito bom gosto que não se satisfazia com qualquer coisa, por isso não podia deixar nada com a empregada. Os cabelos continuavam molhados, posso ficar resfriada, repreendeu a si mesma como se estivesse falando com um dos seus filhos, quando estes ainda eram crianças. Mas, a pequena liberdade falou mais alto e foi invadida por uma espécie de sensação que faz a gente imaginar que está dirigindo um conversível com o vento a bater no rosto. Orgulhosa, pensou: Enfim, consegui me lavar, antes de meu marido chegar.
Com a medalha no peito, passou a observar a janela, já que ainda não estava na hora da novela. Constatou: a janela é como uma televisão, só que mostra a realidade. E, naquele dia, as estrelas tinham se escondido em seus apartamentos, o céu estava escuro, iluminado apenas pelos pontos de luz constantes nos edifícios. Pensou: todos estes focos substituem as estrelas. Continuou: neste universo, eu também sou uma estrela, pois meu abajur brilha no escuro. Estava tudo indo muito bem, de fato, gostava da paisagem que via: prédios muito altos, asfalto, noite fechada. Descobriu: a janela revela a cidade e eu nada mais sou do que o espelho dela. Sabia ser firme, rígida, paradoxalmente acolhedora e assustadora. E tinha a sorte de morar no último andar. De cima, podia apreciar a cidade e ver os vizinhos chegarem sem ser vista. Como Deus pode fazer. Satisfeita, perguntou-se: se minha vida é perfeita como esta paisagem do que eu poderia reclamar? A resposta estava vindo em forma de negativa, até receber o primeiro golpe: foi enforcada com sua própria corrente, a mesma que sustentava a medalha de ouro, a pouco, conquistada.
Desça do pódio, ele não mais lhe pertence.
Esta é a pior parte da vida: tudo muda muito de repente.
Um pequeno balão vermelho.
Um pequeno balão vermelho, desses de aniversário de criança.
Um pequeno balão vermelho, desses de aniversário de criança, cruzava os ares, devagar e solitário.
E este pequeno balão vermelho, desses de aniversário de criança, teve a ousadia de passar pela sua janela e manchar sua paisagem. E este pequeno balão vermelho, desses de aniversário de criança, teve a audácia de destruir seu raro momento de paz e felicidade. E este balão vermelho, desses de aniversário de criança, nada mais era do que um terrível inimigo da cidade. Decidiu: preciso acabar com este intruso, com este pequeno balão vermelho. Basta uma agulha, igual a que a mãe de Branca de Neve se machucou.
E esta é uma das coisas mais estranhas da vida: em um segundo, se consegue pensar em zilhões de coisas.
No último pensamento, do penúltimo parágrafo, o tempo parou.
Você é uma assassina. Matou sua mãe e, agora, é a vez do pequeno balão vermelho.
Eu não matei minha mãe. Ela morreu, aos oitenta e cinco anos de idade.
Você é uma assassina. Começou a destruir sua mãe, desde o dia em que nasceu: perfeita, como uma boneca. Você sempre percebeu as dúvidas dela quanto à sua própria aparência. Você sempre soube do medo que ela tinha de ser trocada por outra mulher. E o que fez? Você virou a outra mulher.
Eu não tenho que me desculpar pelo amor que meu pai sentia por mim. Nós tínhamos muitas afinidades, o que não acontecia entre nós duas. Ela nunca me amou.
E as estórias que ela lhe contava, antes de dormir? E os vestidos que ela costumava costurar? Isso é falta de amor?Você não passa de um ser humano desprezível.
Eu não me importo com opiniões levianas a meu respeito.
Claro que você não se importa! Você só consegue olhar para o seu nariz! Desconhece a existência do outro. Como ignorava a tristeza de sua mãe.
Eu não me importo com nada do que diz. Sei que existem pessoas que pensam de forma diferente a meu respeito.
Quem? Seu marido? Convenhamos, ele nunca lhe amou. Você é esperta demais para não perceber que você não passa de uma empregada de luxo, equipada com as duas melhores qualidades: beleza e inteligência. A beleza para deixá-lo excitado, para se gabar com os amigos. A inteligência para divertir os parentes em ocasiões formais. Quem? Os filhos? O menino mudou-se para o exterior. Nem liga no seu aniversário. A menina detesta os seus palpites, acha você mandona e intrometida.
Meus filhos não pensam isso de mim, tenho certeza, meus filhos não pensam isso de mim.
E o que você fez? Virou a outra mulher. A pequena notável, a superperfeita. Linda, inteligente, espirituosa. A melhor aluna do mundo. A primeira a acordar para ser a primeira a se sentar na primeira cadeira da primeira fila da sala de aula. A que todos queriam namorar, casar. Mas, você não queria um dos meninos da sua idade. Você queria seu pai.
Isto é um absurdo. Eu não queria namorar os meninos da minha idade porque eles não passavam de uns tolos, uns bobos. E você não sabe o peso que era ser a melhor em tudo. Todos os dias, eu acordava já cansada. Nada podia ficar fora do lugar. Eu tinha que estar sempre linda, feliz, corretamente maquiada. Eu tinha sempre que tirar as melhores notas do colégio, ler sempre os textos em voz alta.
Que pena, tudo isso para se tornar uma empregadinha de playboy burguês. Você sabe: seu marido não trabalha. Finge que vai ao escritório, finge que está estressado apenas para não se sentir deslocado, neste novo tempo. Você sabe: ele está atrasado porque está com a amante.
Lucy não é amante dele, ela é minha melhor amiga.
Não finja que se importa. Você gosta desta situação. Prefere ele longe de casa, tem nojo de ser tocada por ele. Você queria seu pai. E, como não conseguiu, acabou se casando com um homem mais velho.
Eu sempre fui apaixonada pelo Jorge, independente de sua idade.
Apaixonada? Não me faça rir! No dia do seu casamento, suas lágrimas eram de puro desespero.
Sim, eu estava assustada, toda a minha vida iria mudar, eu não sabia como as coisas iriam acontecer...
Você queria seu pai. Você queria seu pai. Você queria seu pai. Você queria seu pai. Você queria seu pai.
Sim, eu morro de saudades de meu pai! Ele foi o único homem que soube me proteger! Mas isso não significa que eu queria roubá-lo de minha mãe!
A pequena notável, a superperfeita. Linda, inteligente, espirituosa. A melhor aluna do mundo. A primeira a acordar para ser a primeira a se sentar na primeira cadeira da primeira fila da sala de aula. A que todos queriam namorar, casar. Você era assim para magoar sua mãe, para demonstrar a sua imperfeição.
Não! Eu era assim, justamente, pelo contrário. Queria que ela me amasse, queria que ela me admirasse como as outras pessoas me admiravam. Queria que ela me fizesse elogios, queria que me levasse às lojas para fazer compras.
Você é uma assassina. Começou a destruir sua mãe, desde o dia em que nasceu, assim como fez Branca de Neve com a mãe. E é com a mesma agulha que você, espelho meu, vai matar o pequeno balão vermelho. Você tem inveja de sua estrutura, de seu desprendimento. Não consegue suportar algo mais belo que você. É uma Bruxa vestida de Branca de Neve, é uma Branca de Neve Bruxa. Você não consegue admitir a existência de algo que não lhe obedeça, que fuja ao seu controle. Na verdade, você se sente acuada, sufocada, presa entre os pequenos espaços existentes entre os edifícios, amedrontada pelas as estruturas rígidas da cidade. Como um rato.
Pensou: em que espaço viver, senão, na cidade?
Não se esqueçam: o pequeno balão vermelho, desses de aniversário de criança, ainda cruzava os ares, devagar e solitário.
Pensei: inevitável que queira voar, que se junte a ele.
Desisti: prefiro não fazer escolhas.
Uma medalha partiu-se no chão. E o tempo voltou a passar.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008
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4 comentários:
li primeiro o texto de Renata posto neste blog. Achei interessante a redundância como uso de estilo utilizado para enfatizar o fim do personagem ainda antes do fim. entretanto nesse texto o uso da redundancia me fez ficar reticente, pois me fez confundir um estilo com o senso comum. nesse texto claramente as ligações são previsíveis fazendo com que o texto fique monótono. previsível porque não assusta o leitor. não o provoca a sair do texto. a escritora raiça carvalho insiste que o escritor deve humildade ao texto sempre. a metáfora, por exemplo, não é tão somente uma comparação banal, uma imagem que dizemos no dia dia, mas um conhecimento em forma de estética, mesmo que seja somente sentida e não definida.
ismael
A hulmidade do autor. O autor que convoco o leitor. É uma maneira revolucionária de escrever.
Mas, ainda que o texto da Renata não tenha uma singularidade e por um instante percamos o caminho dele, ele também demonstra uma tentativa da autora improvisar na conexão de partes aparentemente desconexas, mas que através da leitura do todo ganha sentido. Particularmente, a avaliação que faço de Concretos é que trata-se de um texto de uma escritora que está bem perto da consistência literária. A maneira que ela concetena a sua tese é maravilhosa. O diálogo entre as subjetividades é rebuscada, ainda que prevísivel, pois, a tese é um grande clichê. Mas, um clichê para quem?
A minha única resistência com a autora é o desamor dela. Não vejo espírito de liberdade. Não, não vejo. E assim como o enredo, a narrativa também não é livre. Tudo é muito preso as linhas. Tudo é muito sozinho e subjetivo.
Ela seria bem mais linda se fosse mais poética e livre...
Um bom texto, apesar da visão caricata do discurso e o final desnecessário - o que não chega a comprometer o todo. Concordo com ambos, no que se refere: a monotonia,previsíbilidade e rigidez ,afinal essas são características dos concretos. Talvez a linha da escritora seguiu entre concretos , o que pode ter sido proposital: a sensação do texto é ligada diretamente ao tema.
Achei o blog bem interessante e concordo com as críticas feitas ao Concretos. Particularmente, não o considero um dos meus melhores trabalhos e gostei de conhecer a opinião dos leitores. Vou colocar o link lá no meu blog e espero que as discussões sejam sempre conduzidas desta forma.
Grande abraço,
Renata
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