sexta-feira, 6 de julho de 2007

Cinela

Ismael Teixeira

Minha casa tem uma janela. Não que não houvesse outras, mas penso que janela só é janela quando olhamos através dela e nos sentimos sós. Essa não ficava no quarto, nem na sala. Era uma janela sem importância alguma. Fazia parte de um quartinho inóspito que guardava minha coleção de dicionários. Certo dia, aqueles dias que acordamos para dentro, faltei o trabalho por indisposição crônica e passei a organizar meus dicionários por ordem alfabética. Naturalmente, como sempre faço, tirei meus óculos para limpá-los, e como por um estalo, redescobri com meus 4,5 graus de miopia, a janela esquecida. Nunca fui uma apreciadora de janelas. Geralmente as uso como todo mundo. Olho o tempo, fecho por causa da chuva ou do sol, ou mesmo para ventilar o ambiente. Mas, confesso que com essa adquiri um certo apego emocional. Mais tarde, nos momentos que passei a divagar ao teu lado denominei-a Cinela. Bem leitor. Deve está se perguntando por que Cinela. O que ela tinha de tão especial. Peço que não pergunte. Apenas ouça. Deparei-me com um emaranhado de outras janelas. Era um prédio decadente que tinha atrás do meu. A visão desagradável me lembrou o porquê nunca tinha me importando com aquele lado do mundo. Entretanto, o que se ignora é o que se mais precisa, e ao colocar de novo os óculos, passeando meu olhar voyeur a procura de alguma verossimilhança com as novelas de Nelson Rodrigues me deparei com uma cena pitoresca. Numa sala vazia um quadro. Um quadro branco ao fundo voltado para minha janela. Como se Dali tivesse dirigido aquele momento jurei voltar no dia seguinte. Acordei pela manhã e as atribulações me tomaram de tal forma que fui me lembrar da janela dias depois ao ler Maiakovski. Não sei o que o poeta tem haver com janela, com quadro, ou um quadro na janela, mas corri para ver, ou sentir, aquela imagem outra vez. Espanto. Havia uma mulher. Parecia uma mulher. Não sei. Se for. Quem será? Jurei comprar um binóculo. No outro dia estava com um binóculo em mãos, e desde o trabalho já pensara na imagem borrada que guardei na lembrança. Parecia uma mulher. Chegando em casa não fiz nada a não ser correr para identificar a imagem. Sim. Era uma mulher. Era uma mulher incompleta, mas era uma mulher. Pensei. Meu Deus. Verifiquei o ambiente ao redor do quadro. Havia apenas o quadro. No dia seguinte o quadro havia mudado. A pintura parecia bem mais real. E foi ficando à medida que passaram os dias. Quem pintara o quadro? Quem morava ali. Acho que estava ficando obsessiva com aquilo. Precisava de um tempo. Desligar-me dessa idéia. Os dias se passaram e a imagem já não se movia. O quadro não mudou de lugar. Havia ficado estático. Nenhuma mudança mais. Um mês. Dois meses. Decidi perguntar quem era aquele morador misterioso do décimo segundo andar. O porteiro havia me dito que pouco conhecia sua vida. Era um rapaz reservado que havia se mudado ainda aquele ano. Ao retornar para casa jurei abandonar aquilo e cuidar da minha vida. Fui longe demais pensei. Embora não viva sem chocolates, de resto não me acho uma pessoa complicada. Mas confesso que um dia não resisti e voltei a dar uma espiadinha. Observando, havia notado que o pintor misterioso havia colocado uma janela no quadro. Seus cabelos também haviam crescido. Justifico. Acabei tendo uma recaída. Não resisti. Mas, afinal, quem não guarda também suas loucuras? Sem culpa voltei àquela vida. Intriguei-me quando, um dia, já sentada num banco que pus para a ocasião rotineira do pós-trabalho, a mulher parecia mesmo alguém me olhando da janela. Depois de ver e rever como se deparasse a algo familiar, com uma sonora gargalhada. Vi que a imagem que via era eu olhando a janela.

6 comentários:

N. disse...

Janela

De dentro para fora. É assim que consigo ver a janela. Se perceber melhor, daquele quadro estático, sai movimento. Tudo se esvai em pedacinhos de tempo. Então, a janela provoca sensações das mais misteriosas às mais libertadoras. Embebidas no prazer e mergulhadas nas possibilidades de imaginação. E tudo, assim, mais se parece espelho que projeta a ambiência e que grafa formas e cores nesse ritmo dinâmico. A minha janela é um cinema ao vivo, contando a narrativa do agora, sem limites para tais sonoridades, concretudes e abstrações. A encruzilhada do in / out com cortinas para o palco do puro cotidiano. A todo momento a cri’atividade congrega e universaliza, tal qual fosse a janela a ligação do eu com um mundo que passa por ela. Então, é cachorro, é carro, é nuvem, é gente, é tudo que cabe nesse espaço quadrado. Parece, às vezes, fonte inesgotável de frames perambulando na frente do olhar e se abrindo, em luz, para um lugar de dentro de si, um espaço sagrado. A conexão entre o sonho e a realidade. O esconderijo e a amplitude. O espasmo e a velocidade. De repente, encontros, saudades, vírgulas, solidão, tudo pode se intercambiar. Troca incessante de energia entre o que se propõe de dentro e o que é de fora por natureza. Mas, a janela continua lá, intacta, percebendo todos os sentidos, todas os momentos. Eu, daqui, fico parado apenas a contemplar. Afinal, transeunte ela não me espera e em frações de segundos modifica minha percepção do outro lado de lá. De fora pra dentro.

Sócrates Santana disse...

"Só é janela quando olhamos através dela e nos sentimos sós". É interessante a maneira que o autor diferencia esses dois momentos: Só e sós. Uma bela pista para o escorregar adiantado da leitura. Não sei se o termo "através" foi proposital ou apenas correu bem. Só que o termo ganha um significado muito grande ao ser conectado com o "só" e o "sós". Através, atravessado, cortado, recortado, quadrado, enquadrado. É interessante a perícia e a seleção das palavras por parte do autor: quartinho. Interessante. O texto começa bem, contudo, não desenvolve com a mesma maestria. A quebra e o diálogo aberto com o leitor não precisa ser feito de maneira tão exposta. O texto já demonstrava essa estética. Ele ganha fôlego novamente com o retorno das cenas, possibilitando a brilhante criação de uma nova perspectiva da janela. Surge um emaranhado delas e o texto volta a ter força. E a construção do enredo provoca uma inflexão sobre o sujeito...e retornamos ao argumento do só e sós.

Anônimo disse...

Fica um ar de dúvida. É intrigante a conversa que a personagem tem com o porteiro. Ele fala como se ela estivesse falando de um apartamento logo à frente. Isso reveste o enredo com uma interrogação. Aliás, uma interrogação construída desde o início do texto. Não necessariamente no início da leitura.
Quando começamos a ler lemos o título (se houver). Mas o texto começa ali? A idéia começa ali? No título?
Neste caso especifico imagino um título concebido após o surgimento da idéia ou da experiência. O texto de Maiakovski talvez tenha sido a inspiração. Assim como o poeta russo (creio que ele seja russo), o autor ergue uma narrativa capaz de conduzir o leitor (mais do que levar) a fazer um giro de 390º. As janelas vão surgindo e as pistas dos óculos, binóculos que jura ter adquirido simplesmente mostram a proximidade que o personagem a cada dia tem da janela. E a proximidade na verdade (aparentemente) significa prestar mais atenção em si mesmo. O dia em que se percebe que a casa tem uma janela, após o desvencilhar do livro do poeta russo e o lançamento de um olhar introspectivo até a janela que conduz o autor-personagem até um espelho. Ele presta mais atenção nos livros, tenta organizar cada como se estivesse organizando a própria vida. A busca incessante da lógica. No outro dia o personagem levanta e chega até a janela. Ele usa óculos com 4,5 graus. E ver a vida dele passar, como um filme. Como quem bate o carro e antes do instante final rever tudo que aconteceu até ali. Tenta esquecer. Mas o vasculhar, os entulhos da lembrança não vacilam. Uma tragédia. Um suicidio, talvez. Daí Nelson Rodirguez, imagino. De repente a surpresa de um quadro. A reconstituição das cenas e da experiência. E aos poucos formamos uma imagem. Ora um rapaz, mas a certeza oculta e sempre negada do eu. E o eu aparece feliz e contente, porque assim ele é.
Obs: o formato do texto é ritmico. Poucas interrogações. Duas, salvo engano. Talvez, uma para o "só"; outra para o "sós". Ao mesmo tempo lemos períodos que são indicativos de indagações sem interrogações. Os dicionários moravam em um lugar inóspito, feito para guardá-los e para olhá-los. Por isso a janela deste quarto não existe. E a inesxistência caminha por todo o texto, seja pela ausência de pontuação, seja pelo embate existencial entre o personagem e o autor. Em nenhum momento consegui vislumbrar o que o título primeiramente sugeriu: um enredo construído em torno de uma janela, que na verdade era apenas minha televisão ligado com um DVD. Ele surpreende, tal como Cecília Meireles surpreender com Mulher no Espelho. De fato contém muitas reflexões, um traço da literatura contemporânea. E um bom indício desta interpretação atual do mundo do autor está contida justamente no termo pós-trabalho que usa. O Ócio Criativo é uma boa leitura para a compreensão deste trecho. Uma poesia de Cosme Lima também serve como indicativo interpretativo para este embate entre o eu e a projeção dele. Lima justifica porque não escreve poesia através de uma. Nega o caráter existencial e se vê fazendo o que nega para explicar o dispêndio e o infortúnio que é olhar para si mesmo e não gosta do que lhe é subtraído para a criação de uma poesia. Fantástico.

Anônimo disse...

Cinela é um trajeto. Uma busca de compreenção do começo ao fim. Compreenção existencial, semiótica, como meramente fictícia à história apresentada. A personagem que guarda a compreenção (dicionários) num quarto inóspito renega o olhar. Renega o desvendar do mundo e as janelas. Sua miopia não é proposital. Somos mesmo miopes da realidade. A indiferença que a personagem tem às janelas e a angústia e contentamento que vai adquirindo é um processo que o autor descreve e que pode ser comparado a qualquer área do conhecimento. O conto é uma ode a espistemologia ontológica do homem. A relação entre sujeito e objeto e a busca de compreenção das causalidades entre esses. Mesmo após descoberta a janela, a possibilidade e necessidade do ato filosófico ela ainda vaila. Vacila pois estamos submersos.Maiakovski a desperta novamente. Lança o fogo que impulsiona estarmos antes de tudo. Pensar o pensar. Pensar antes e depois de ver. A sua visão muda, como muda a tela. E essa dialética vem da investigação que ela faz dentro e fora de si mesma. cinela é o cinema da janela. O nosso cinema existencial entre o si simbólico e o si que está em nós. Si-nela.

isma.

Anônimo disse...

Foi isso que eu disse. Um trajeto. Um giro de 390º.

Maíra Guedes disse...

Engraçado.Sinto vontade de conversar sobre o texto,discorrer sensações, de descobrir quantas janelas é possível ter dentro das palavras do Menino.Sempre amei janelas,sempre amei ainda mais as janelas que podem ser vistas de uma janela só.E a narrativa permite.As imagens construídas numa cadência sólida,com um ritmo maio bolero à meia luz,um bolero que amanhce, assim como as palavras que amanhecem,e a gente percebe o dia que passa.Lindo.E a gente se embebeda e se descobre.
Muitas janelas pra nós!