terça-feira, 3 de julho de 2007

Uma aliança

Soul Sócrates

Fazia calor em Salvador. Mas, não era dia. Em pé, Antônio Conceição aguardava o buzú na entrada da ladeira do Cabula. Distraído com a mão direita no bolso, tomou um susto consigo mesmo ao lembrar do pão que tinha que comprar.
- Puta que pariu!
Encostada na janela do ônibus, Lurdes Maria olhava cambaleante para a rua. O carro parou. Ia para a Mata Escura. Antônio morava lá. Agarrou-se a porta do transporte e segurou com força. Lurdes se espantou.
- Esses malucos! Ficam fazendo bagunça!
Antônio ignorou. O motorista não queria seguir a viagem enquanto ele não saltasse. Ele batia na lateral do carro com um olhar fixo no retrovisor que refletia a imagem do motorista.
- Arrasta!
Pessoas espremidas gritavam contra e a favor de Antônio.
- Segue essa porra!
- Desce vagabundo!
Lurdes fitava o rosto de Antônio. Até que se ateve a mão esquerda dele. Havia uma aliança.
- Leva motor! É pai de família!
Horas depois todos comiam pelo menos um pão.

2 comentários:

doispontospontocom disse...

Pensei muito na idéia contraditória entre vagabundo e pai de família. Duas narrativas sociais, calcadas por estereótipos e aparências vãs mas que são capazes de definir uma noite. A noite de Antônio no caso. Interessante como esse pequeno estereótipo, "uma aliança", ganha tanto significado. Pensei no último noticiário. Uma empregada doméstica negra espancada por parecer prostituta. Como as representações definem hoje em dia!

isma.

Anônimo disse...

É claro que sempre cabe em avaliações como essa que corre a seguinte reflexões: até que ponto somos de fato conduzidos por estereótipos? Será que um estereótipo é realmente uma aparência da realidade???
Parecer, essência, parente, familiar...rótulo. Uma aparência é um rótulo? É uma construção social e simbólica? As narrativas são construídas para chocar os termos e as idéias.